POR MICHELI DUARTE: 35 anos do ECA: quando a lei encontra a vida real

Quando iniciei minha caminhada no Proame, em 2011, fui convidada a realizar grupos com adolescentes para conversar sobre seus direitos. O Estatuto da Criança e do Adolescente já existia havia mais de duas décadas. Mas foi ali, naquele espaço de escuta e troca, que compreendi, na prática, o que o ECA representa: não é apenas uma lei, é um compromisso com o cuidado, a proteção e a escuta verdadeira. Desde então, esse compromisso tem guiado minha trajetória.
Sou Micheli Fabiana Duarte, diretora do Proame Cedeca, uma organização que há 37 anos atua na defesa dos direitos humanos de crianças, adolescentes e suas famílias, especialmente nos territórios onde esses direitos ainda são negados ou invisibilizados. Trabalhar no Proame é estar, todos os dias, em contato com histórias de dor, de superação, de resistência e de esperança. E é nesse cotidiano que o ECA faz sentido: ele não é um papel guardado numa gaveta. Ele vive, pulsa, nas ações que construímos com as escolas, com as redes de proteção, com as famílias e, principalmente, com as próprias crianças e adolescentes.
Nestes 35 anos do ECA, não há como negar os avanços. O Brasil aprendeu a olhar para suas crianças e adolescentes como sujeitos de direitos, algo impensável antes de 1990. A criação dos Conselhos Tutelares, o acesso ampliado à educação e à saúde, a redução de diversas formas de violência institucional, os mecanismos de escuta e participação infantojuvenil, tudo isso é fruto da luta de muitas pessoas, movimentos e instituições, alicerçados nessa lei que mudou o rumo da história.
Mas também não podemos romantizar. Todos os dias nos deparamos com brechas, omissões e retrocessos. Crianças crescendo sem acesso a serviços básicos. Adolescentes criminalizados por serem pobres e negros. Escolas com estruturas precárias, sem o mínimo necessário para garantir uma educação digna. Famílias em sofrimento, sem o apoio que o Estado deveria oferecer. E, diante disso, não podemos nos calar. O ECA é, sim, um marco histórico. Mas precisa ser efetivado com prioridade absoluta.
Celebrar os 35 anos do ECA é lembrar que ainda há muito a ser feito. É reafirmar que nenhuma criança e adolescente deve ser deixado para trás. Que a proteção integral não é favor, é obrigação do Estado e dever da sociedade e da família. É um pacto que precisa ser renovado todos os dias.
É também um chamado. Um chamado para seguirmos vigilantes, comprometidos, incansáveis na luta por uma sociedade mais justa para a infância e a juventude. Um chamado para garantir orçamento, formação, estrutura e prioridade real para as políticas públicas voltadas a essa população. Um chamado para que cada profissional da rede, cada gestor público, cada cidadão compreenda que proteger uma criança e adolescente é proteger o presente e o futuro de todos nós.
Hoje, ao olhar para esse caminho percorrido, sinto gratidão pelas conquistas, indignação pelos retrocessos e esperança pela luta que continua. O ECA segue vivo, nas OSCs, nas escolas, nas comunidades, no coração de quem acredita que é possível construir um mundo melhor para crianças e adolescentes.
Que esse aniversário nos encha de esperança e de coragem. Porque enquanto houver uma única criança ou adolescente em situação de violência, violação ou abandono, nosso trabalho ainda não estará completo.