NOTA PÚBLICA: Proame Cedeca – Esteio

Sobre o crime ocorrido em 22 de julho de 2025
O Proame Cedeca, na condição de Centro de Defesa de Crianças e Adolescentes, vem a público manifestar seu mais profundo repúdio a qualquer ato de violência, especialmente os que atingem crianças, adolescentes e jovens.
Micheli Duarte, diretora do Proame, afirma.
“Não podemos e não iremos tolerar que a vida seja tratada com banalidade e desrespeito. Como mulher, mãe e diretora do Proame, não posso me calar diante da tragédia que nos atingiu em 22 de julho. Um crime hediondo, que tirou vidas inocentes e escancarou, mais uma vez, o quanto ainda precisamos avançar no enfrentamento da violência contra meninas, adolescentes e mulheres. Não se trata apenas de um caso de polícia. Trata-se de um alerta grave para toda a sociedade, para o sistema de proteção, para as instituições e para o Estado. O que aconteceu é inaceitável e precisamos dizer isso em voz alta, com coragem, sensibilidade e compromisso com a vida.”
Micheli reforça o compromisso da instituição na defesa incondicional dos direitos de crianças e adolescentes. “Seguiremos firmes, com responsabilidade e coragem, diante de qualquer violação de direitos. Continuaremos denunciando, acolhendo e protegendo. O que aconteceu em Esteio não pode ser ignorado é um chamado urgente à responsabilidade de toda a sociedade. Esse luto coletivo precisa se transformar em luta, por justiça, por memória e por um presente onde a vida das nossas crianças e adolescentes seja, de fato, prioridade.”
Reflexão de Vanessa Troleiz, psicóloga do Proame Cedeca
Ao analisarmos este crime tão brutal, somos confrontados com múltiplas camadas de violência e violação de direitos. Uma das mais dolorosas é a forma como a fé, que deveria ser fonte de acolhimento, amor e esperança foi utilizada de maneira distorcida para manipular uma adolescente. O agressor se valeu de sua posição de liderança religiosa para se aproximar da vítima e convencê-la, ainda menor de idade, a entregar seu corpo em troca de promessas “em nome da fé. Essa inversão perversa de valores aprofunda o sofrimento, não apenas da vítima e sua família, mas de toda uma comunidade que vê abalada sua confiança naquilo que representa espiritualidade e pertencimento.
O uso da religiosidade como ferramenta de manipulação e encobrimento é uma das formas mais cruéis de violência simbólica e emocional. Quando a fé é instrumentalizada para violar, ela fere profundamente não só corpos, mas também vínculos, crenças e identidades.
Não bastasse essa manipulação, o crime revelou ainda outra camada de atrocidade, a coação de dois adolescentes para participarem do assassinato. O que se evidencia aqui não é apenas a frieza de um ato planejado, mas o modo como adultos conscientes das suas ações podem arrastar jovens em condição de vulnerabilidade e desenvolvimento para trajetórias de violência irreversíveis. Quando um adolescente comete um homicídio, a sociedade inteira precisa se perguntar: onde falhamos antes que isso acontecesse?
Quando um adolescente é arrastado para o mundo da violência, ele é roubado de sua infância e de sua inocência, impactando no seu futuro. Seja por coação, falta de oportunidades, exposição a ambientes desestruturados ou manipulação, a participação em um crime representa o fracasso coletivo em garantir-lhes um ambiente seguro e necessário para o desenvolvimento saudável. Isso fere diretamente o direito à vida, à liberdade e à dignidade, previstos no ECA – Estatuto da Criança e do Adolescente. Certamente a responsabilização para todos os envolvidos na ação criminal deve ocorrer, embora seja necessário voltarmos o olhar para as causas subjacentes que levam adolescentes a cometerem atos tão extremos. A ausência de acesso à educação de qualidade, a falta de perspectivas de emprego, a desestruturação familiar, a exposição à violência e ao tráfico de drogas, e a falha do Estado em oferecer políticas públicas eficazes são alguns dos fatores que empurram esses jovens para esse caminho. É fácil apontar o dedo para as adolescências e as juventudes. A sociedade é sedenta por condenar adolescentes e jovens, rotulando-os, limitando seus futuros com um julgamento implacável. Ora, é simples compreender que enquanto a mira está neles, somos rápidos em fechar os olhos para as falhas gritantes e as irresponsabilidades daqueles que deveriam garantir e proteger os direitos fundamentais: os adultos.
Onde está a cobrança pela omissão? Onde está a responsabilidade da sociedade e do Estado que, muitas vezes, falha em sua atuação fundamental? Não podemos exigir maturidade de quem mal teve a chance de crescer, ao mesmo tempo em que a negamos a quem já deveria tê-la. É hora de virar o dedo para nós mesmos e reconhecer que a verdadeira injustiça reside na hipocrisia de culpar os adolescentes e jovens enquanto protegemos as falhas dos adultos e as brechas do próprio sistema.
É possível compreender que o envolvimento de adolescentes em homicídios é um grito de socorro. É a evidência de que a rede de proteção falhou e que direitos básicos estão sendo violados. Precisamos de um compromisso social renovado para investir em prevenção, educação, esporte, cultura e programas de ressocialização que ofereçam uma alternativa real a esses jovens. Somente assim poderemos construir uma sociedade onde a vida seja valorizada e onde cada criança e adolescente tenha a chance de um futuro digno e sem violência. É nosso dever protegê-los e garantir que seus direitos não sejam apenas palavras em um papel, mas uma realidade alcançada por todos.
Esse complexo enredo de violência é ainda mais perverso quando somada à irresponsabilidade de homens adultos. É estarrecedor testemunhar, repetidamente, a irresponsabilidade que, em um sórdido senso de impunidade, agem como se estivessem acima das leis. Essa mentalidade distorcida os leva a crer que têm o direito de fazer o que bem entendem, sem arcar com as consequências de seus atos, especialmente quando se trata de suas responsabilidades familiares e afetivas. O ápice dessa postura egoísta e covarde manifesta-se no feminicídio: a decisão brutal de matar uma mulher para “extinguir um problema”, como se uma vida humana pudesse ser descartada para resolver uma questão pessoal. Essa lógica perversa não apenas viola todos os direitos humanos, mas também revela uma cultura consolidada no machismo. O não reconhecimento da paternidade, o ciúme possessivo e a incapacidade de lidar com o fim de um relacionamento tornam-se, para esses indivíduos, justificativas para a violência. Em vez de assumir suas responsabilidades, buscar soluções maduras ou aceitar as escolhas do outro, eles optam pelo caminho mais cruel e definitivo: o assassinato.
Inquestionavelmente, não podemos tolerar essa narrativa, é urgente que os homens compreendam que a liberdade individual termina onde começa o direito do outro, e que a responsabilidade é um pilar fundamental da vida em comunidade. A vida de uma mulher não é um problema a ser resolvido, e muito menos a ser extinto pela violência. O feminicídio é a expressão máxima da irresponsabilidade e da misoginia, e combatê-lo exige não apenas responsabilização judicial, mas também uma profunda mudança cultural que promova o respeito, a igualdade e a responsabilização de todos, sem exceção. Vanessa Troleiz – Psicóloga do Proame Cedeca.